terça-feira, 2 de outubro de 2007

BRINCANDO DE FILOSOFAR: MONTEIRO LOBATO

Relendo algumas coisas de Monteiro Lobato nessas férias de final de ano fiz o seguinte questionamento: Ele não seria mais produtivo, no trabalho com as crianças, do que obras especificamente filosóficas? Afinal, o modo como as crianças lidam com os objetos filosoficos, a suposta imortalidade da alma, o corpo e a sexualidade, a liberdade, Deus, o tempo, as lembranças, a violencia e a agressividade, o sentido da vida e a morte… é muito especifico e não haveria como elas próprias fazerem filosofia no sentido clássico da expressão porque isso ao invez de enriquecer, empobreceria a criatividade. É uma verdadeira camisa-de-força submeter crianças e adolescentes ao ambiente sisudo, hermetico e, em alguns casos, hirto, dos mestres pensadores da humanidade.

Os jovens só podem acessar o universo filosófico por meios metafóricos, caminhos trocados, espaços ubíquos, universos densos, enfim, mundos ficcionais. Apenas desse modo eles podem partilhar de dúvidas, apreensões, medos e mistérios próprios das indagações filosóficas.

Então, isso tudinho não está já no Sitio do Picapau Amarelo? A Emilia com o seu faz-de-conta, o Pedrinho e a Narizinho, com o heroismo e a bondade, a Dona Benta com a habilidade narrativa e um sentido muito nosso de falar sobre a História Universal, a Tia Anastácia com a sua culinária encatada, o Tio Barnabé com suas histórias acabrunhadas, a Cuca com o seu desejo mórbido de vingança e ódio, o Rabicó com a gula, o Visconde com a sua sapiência e por aí vai, podem conduzir, e efetivamente tem conduzido, as crianças para um mundo mágico no qual as questões filosoficas estão ali, mas não se mostram como tais.

Nas conversas com os meus filhos, me convenci de que a filosofia para crianças é a literatura. Na verdade, a filosofia de adultos, se é que podemos falar assim, é no fundo boa literatura. Assim como a teologia, a boa literatura carrega no sangue o DNA filosófico.

A nossa literatura não fica a desejar nesse quesito. Quanto que a filosofia ganhou com o tema da loucura em O Alienista de Machado de Assis? A bazófia, a ironia, os custumes politicos e a racionalidade da modernização, foram temas presentes nas grandes obras literárias brasileiras.

O nosso Lobato é filho dessa grande tradição nacional. Há vários trabalhos enfocando as influencias intelectuais em seus textos. Para o meu interesse, cumpre apenas destacar que ele é o nosso filósofo da infância. Soube como ninguém ensinar filosofia a mais de uma geração de moleques e molecas brasileiras. É simplesmente impressionante como que ele, lá pelos idos de 1920, tratava a criança enquanto tal, sem descer a trivialidades e banalidades com que até hoje os programas infatis na TV se referem aos "baixinhos". O Sitio do Pica-Pau Amarelo, diferentemente de uma imbecilização generalizada da infancia, é um texto sem caretice, e com magnificência dobra os tempos.

O tempo, que frequenta as principais obras filosóficas ocidentais, é alí um objeto estranho, parece servir aos propósitos dos homens quando na verdade evidencia nossas maiores apreensões que é o medo do indeterminado, do misterioso e do acaso. Emilia acredita burlar o tempo e joga a responsabilidade negativa dos acontecimentos aos adultos que com sua caretice transformam tudo em fardo e desencanto. Ela assume a função positiva de encantar o mundo e é muito bem sucedida pois usa o pó mágico como libertação.

Porem, o sucesso não é na forma como ela acredita, mas na sua própria impossibilidade de dominar os acontecimentos. Isso faz do seu personagem o protótipo do eterno desejo infantil de querer crescer sem deixar de ser criança. O paradoxo da tentativa egóica de freiar o tempo que uma plêiade de autores tratou como forma trágica de existirmos. É da natureza da criança querer o impossivel, tentar conciliar o inconciliável, desejar o inalcançavel.

Os adultos, é verdade, também querem congelar o tempo. O que é o sucesso da industria da plástica-estética se não a recusa da passagem do tempo marcada nas rugas e na esclerose? As crianças, porem, não querem congelar um tempo real, elas querem manipular o tempo da fantasia, um tempo que não está aqui, mas que vive na imaginação, um tempo louco e maravilhoso. Toda criança ao ser criança nega a suposta ordem lógica do mundo criada pelos adultos que um dia elas serão. Elas negam sempre a realidade que lhes agredi e machuca. Assim, são senhoras do tempo e da realidade.

Mas, o pó não é exato, encrenca, como na vida, justamente na hora em que mais se precisa dele. De forma intempestiva, o tempo faz da impaciencia de Emilia um antídoto contra a sua própria arrogancia que a impede de entender que a vida não se deixa manipular ao nosso bel prazer, que a vida não tem lógica e a existencia, segundo J.P.Sartre, navega como um barco a deriva.

O mesmo tempo que um dia transformou o Menino Maluquinho do Ziraldo num cara legal, deixa Emilia perplexa e o leitor com a pulga atrás da orelha quando engana a bonequinha de pano que tudo pretende saber e fazer.

Diferentemente de Peter Pan, para quem ser criança faz congelar o tempo, no Sítio o tempo não pára, as crianças podem avançar ou recuar conforme uma ordem mágica que a narrativa de Dona Benta torna disponível mediante o sabor da leitura e o poder da imaginação. E é apenas no reino encantado que jogar com o tempo é possível e não traz consequencias. O tempo é ironico, paradoxal e contraditório na vida. Na imaginação, é uma nave, que tem o seu sentido definido pelo prazer da brincadeira.

Assim, o mundo dos adultos fica diametralmente oposto ao das crianças. São as crianças que passam a ensinar a filosofia, ao seu modo, porque só elas conseguem, pelo poder extraordinario da imaginação, e não há filosofia sem poder imaginativo, falar e vivenciar o pensamento filosofico. O lúdico, é a vida como experimento. E como disse o pai do pragmatismo americano, Charles Sander Pierce, é próprio do experimento a possibilidade de não dar em nada.

Ninguém, portanto, pode alegar que ao experenciar não sabia que estava embarcando numa viagem que poderia não dar em lugar algum. Como ele dizia, ciencia é uma forma de vida. E vida é uma forma de experenciar o mundo. As crianças são as primeiras a entender tal enunciado pragmatista porque lidam com o mundo a partir do lúdico que gira a vida, o tempo e os sentimentos para diversas direções possíveis.

O Menino Maluquinho, que é um bom exemplo de experimentos fantásticos com a vida, quando teve que vivenciar a dor da separação dos país tratou logo de inventar uma teoria maluca dos lados. Ele criou varios lados para poder acomodar o seu amor pelos pais e não ter que se dividir e escolher entre um e outro. Disse: cada lado tem o seu lado e eu sou o meu próprio lado.

Essa era a ordem possível que ele inventou diante de um mundo agora despedaçado. Não sem ironia, foi diante do tempo que o Menino Maluquinho percebeu ser um cara legal. Como frizou Ziraldo, ele não conseguiu burlar o tempo real. E o que aprendemos com o Maluquinho? Que não podemos substituir indefinidamente a realidade pela imaginação.

Nós, figuras impacientes com o lúdico, atravez da força tentamos fazer as crianças entrarem para o um mundo chato, careta, desagradável e desencantado. Nosso mundo é inflexivel, não dobra, não vira, não muda de lado. As crianças resistem, fazem caretas, corpo mole, dengo, pirraça, inventam teorias malucas, e, nesses atos, fazem filosofia, jogam os jogos complicados da existencia humana.

Nós achamos que o nosso mundo possui uma ordem eterna e as crianças não têm o mesmo entendimento. Como são mais frágeis que nós, são obrigadas a aceitar uma ordem que nós próprios teríamos dúvidas caso um dia alguém perguntasse, a final para que serve um tal mundo. Diria Emilia, para nada.

O próprio Sitio do Pica-Pau Amarelo como obra ficcional é já um objeto filosofico maravilhoso, porque é misteriosa a razão dele permanecer como encanto para gerações de crianças que vivem no mundo moderno weberiano, burocratico, absolutamento desencantado, sem vida espiritual, desacreditado de utopias, sonhos e ideologias.

Hoje a crença no homem está em baixa. Além de termos transformado o planeta numa grande lata de lixo, temos sido com nós mesmos injustos e incompreensíveis. Ora, Emilia já havia entendido tudo isso e proposto como saída convidar os adultos a brincar em seu jardim do faz-de-conta. Aqui os adultos poderiam lembrar de coisas maravilhosas da infancia que foram perdidas, mas que são imprenscindiveis para cultivar nossa humanidade.

E a coisa mais maravilhosa, de todas, na infancia, é a imaginação, o faz-de-conta e a brincadeira, que são soltas, livres, delirantes e irracionais. Lembro como o sabor da manga me conduzia para mundos infinitos, cheios de maravilhas e encantos. O cheiro da terra molhada, depois de meses sem chuva e com sol forte, me deixava simplesmente extasiado. Cheguei a comer a terra na tentativa de trazer para dentro do meu corpo aquele cheiro estonteante, efusivo e mágico. Hoje, cheiro a terra molhada, lembro da infancia, mas não experimento mais aquela sensação maravilhosa de prazer libertário do corpo, de magia encantadora. Hoje é um cheiro desencantado. A criança que havia dentro de mim, hoje não sei mais onde encontrá-la…

É o faz-de-conta que humaniza. Emilia explicou tudo isso direitinho e melhor do que qualquer filósofo ocidental. Não entendo porque os adultos das academias não conseguem sequer ler a Emilia, que dirá conversar com ela!

Poderíam, se assim o fizessem, finalmente entender que a Emilia, que é um presente de Lobato para todos nós, uma demonstração de sua generosidade, grandeza e genialidade, é o ponto de abertura da cultura que nos permite entrar para jogar com o tempo e a vida.

Quando li pela primeira vez Lobato tive a firme convicção de que se tratava de um rei da imaginação, de alguém que possui a Chave do Tamanho, talvez mais do que Lewis Carrol.

Diferentemente de Alice do País das Maravilhas, um mundo maluco e irracional, no qual as coisas estão fora de ordem e parecem de cabeça para baixo, Emilia pensa possuir a chave do mundo. Na sua imaginação, o poder de lidar com um tal mundo é propriedade sua. No decorrer das narrativas, porem, ela se mostra tão impossibilitada quanto Alice. Porem, finge saber e fazer o que não sabe e o que não pode. Ainda assim, Emilia e Alice são muito parecidas. Elas nos ensinam que só podemos viver uma vida legal se soubermos jogar o jogo do tempo e da vida. E isso não é fácil, como sabemos todos nós adultos.

A Marcha da História à Democracia Liberal foi Uma Conquista da Cultura Cristã?

A marcha dahistória à democracia liberal foi uma conquista da cultura cristã?O texto do filósofo ingles Roger Scruton na revista www.revistapronto.com.br sobre Fukuyama revisitado, é dignode atenção sob vários aspectos. Ele nos fazrecordar da famosa tese que ganhou notoriedade na década de 90 e queconsistia numa defesa firme da democracia liberal sob o argumento deque já havíamos visto tudo e agora estaríamos entrando numa espécie defase de hibernação da história, ou melhor, num fim da história. Alguns o interpretaram como um autor banal. Outros, acharam que elequeria nos proteger contra a sedução do totalitarismo. O mundosupostamente pós-liberal seria horripilante, mas ainda assim provavelporque já antes da democracia liberal os seus contornos estavam dadosna indistinção entre poder laico e poder sagrado. O totalitarismoradicaliza o medo do mundo livre e da democracia. O fundamentalismo dosdias de hoje apenas ratifica o que já era sombras lá nos inicios damodernidade iluminada. O que restou disso, Hegel tomou como motivo de reflexão para sustentaro vôo de Minerva. O resultado é: a modernidade consegue fazer tabuarasa de seu itinerario. Com a fenomenologia, tal percurso é saudadocomo movimento para a emancipação. Nele, o espirito se reconhece emseus próprios produtos, finda a alienação e dá-se o recolhimento quandoentão sujeito e objeto se sabem finalmente identicos.Dessa forma, Fukuyama, baseando-se emHegel, localizouna modernidade desencantadaos ultimos suspiros da história humana, era o fim dos percalços e dosideais romanticos e utopicos que haviam animado um conjunto grande deintelectuais inquietos e insatisfeitos, como o Marx, com a modernidade.O próprio Fukuyama hojesabe que isso não é tudo. Na modernidade tardia, o artigo deScrutton ganha mais uma relevancia.Ele reflete sobre essa tese do Fukuyama baseado no visor da crisecultural produzida pela recusa da democracia, do anti-americanismo e dohiato político-iluminista cuja pavimentação agora a Europa unificadasegue ao selar seu destino no fortalecimento da burocracia e nasobreposição de valores coletivos sobre valores individuais.Tudo isso obviamente sob os auspicios daluta contra o terror e naesteira do crescimento dos movimentos anti-ocidente. Alguém disse que oódio cultivado nos guetos academicos do ocidente e nas mesquitasislamicas não é exatamente contra o capitalismo, mas sim contra ademocracia e nosso estilo moderninho de vida, de frenquencia aosupermercado e shoping centers e principalmente de libertinagem sexual.A nova conexão de dominio mundial seria judeus-novaiorquinos contra omundo subdesenvolvido. O anti-semitismo encontra-se agora de mãos dadasao ódio à democracia amaricana.Richard Rorty, na mesma revista, refezas contase disse que a democracialiberal, como irrupção fortuita de valores em circunstanciashistóricas não-previstas, não-planejadas e não-induzidas, estaria agorasob a ameaça dos liberais fajutos que combatem o Estado do BemEstar com chavões velhos de que o distributivismo compromete o estiloamericano de vida. Na verdade, a democracia liberal se fortaleceexatamente na capacidade que tiveram os democratas de reiventar apolitica com base na solidariedade e na generosidade. Aqui Rorty eJurguem Habermas estão juntos no mesmo ponto que fez John Rawls sernotabilizado como defensor aguerrido dos valores democraticos dejustiça eliberdade. Porem, Scrutton, citando IbnKhaldun (1332-1406) e seguindo atese dos ressentimentos nietzschianos, faz recordar que nem tudo deruím que a civilização produziu originou-se da história. Assim, dizele, como pode racismo, xenofobia e tudo o mais, ser de matrizhistórica se já antes da história tinhamos uma propensão aagressividade? dai vem a polemica tese do filosofo ingles: nãodeveríamos creditar na conta da biologia esse caldo comportamental elogo assim, pensamos nós, derivar o ódio à democracia de nossas basesnaturais?Nem Rorty, Habermas ou Rawls, estariamdispostos a confirmar essa tesede matriz nietzschiana. Porem, devemos sim refletir sobre o que faz oocidente ser tão odiado? além obviamente de nosso estilo de vidamoderninho devíamos pensar um pouco sobre as pirotecnias políticas deum Bush e de um Blair para entender como esse ódio biológico que jáhavia antes, agora parece encontrar um campo fértil para proliferar.Mas, somos modernos porque gostamos de ser modernos.A democracia, além de fortuita eesperançosa, é fragil. Sem baseseconomicas estaveis e uma rede distributiva de riqueza, elasimplesmente se torna alvo certo dos sectários e se desmancha no ar.Como pode a democracia sobreviver em tal pantano arenoso?Não pode. Então o caldo culturalocidentallaico e as bases cristãs dademocracia podem sim ser devorados pelas potencias biologicas daespécie reprimidas a séculos em nome da boa convivencia e datolerancia. Tudo o que queremos é saber tolerar os diferentes. Nãopodemos aceitar como principio algo que nos fere em nosso amor próprioou em nosso amor fati. Se Cristo sabia que devíamos recuar,aplacar nossos ressentimentos e suportar nossas diferenças, é poque eletinha boas razões, e razões são sempre iluministas, de apostar as suasfichas numa civilização emancipada. Ainda podemos fazer isso?

Sergio Fonseca

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Raça?

Há hoje no Brasil, na esteira dos debates sobre ações afirmativas e cotas, uma discussão sobre se devemos e por que usamos o conceito de raça para especificar a cultura negra se historicamente tal conceito foi usado para nos massacrar. Há como fundamentar o uso de raça para dar legitimidade as demandas do movimento negro nacional? Por isso escrevi um artigo que enviei aos jornais locais tentando sustentar a posição do movimento negro para continuar a usar o conceito de raça apesar da ciência dizer o contrário. Espero que gostem e questionem.
A principal ideologia que motivou os alemães a irem a guerra foi a teoria da supremacia racial que hoje é contestada pela ciência. Até meados de 1930, o conceito de raça era utilizado como verdade cientifica inquestionável. Raça era um conjunto de caracteres físicos e mentais herdados de um ancestral comum. Tal unidade de origem não podia ser molestada por influencias alheias e prejudiciais. A mistura racial era tida como o principal fator de degeneração e perda de vitalidade física e mental de um povo. No Brasil, a mistura racial foi disputada por otimistas e pessimistas. Para uns, a mistura inevitavelmente nos conduziria a brancura de que necessitávamos para obter o passaporte e identidade de nação civilizada. Os segundos tinham a firme convicção de que a mistura não iria produzir mais do que um povo de pardos, mestiços e prosaicos.
Havia duas formas de identificar a natureza de uma raça e os seus produtos histórico-culturais superiores. Quanto à estrutura biológica, o uso do paquímetro para medir o tamanho do cérebro talvez seja a face mais hilária de uma longa série de investidas pseudo-cientificas para separar o elemento superior dos inferiores. Quanto aos produtos, talvez a filosofia de Hegel possa melhor representar qual tipo de concepção racial era mais adequada a interesses coloniais e escravistas. Para o filósofo alemão, o desenvolvimento histórico se verifica objetivamente nas construções institucionais (leia-se estado), na religiosidade, nas artes, na cultura e na ciência de um povo. Quando ele visualizou no europeu o cume da grande pirâmide da evolução humana, simplesmente deixou ao não-europeu a disputa pelos degraus de baixo da escada de chegada à ilustração. Era mais do que evidente que a Europa satisfazia tal critério canhestro de superioridade racial que era inclusive capaz de formar um conceito de humano, bem ao gosto da esclarecida modernidade ocidental. O específico europeu foi ilusoriamente projetado como sendo dados objetivos para verificação do status de evolução de um determinado povo e sua cultura. O europeu, ele próprio, agora é o modelo de civilização e de desenvolvimento cientifico. A sua natureza física e a cultura fecham com a civilização supostamente desejável pela humanidade.
A ciência natural chutou o conceito de raça por considerá-lo inadequado para especificar os diversos agrupamentos genéticos verificados entre a espécie humana. A antropologia e a história chutaram o conceito de raça por considerá-lo inadequado para explicar as desigualdades sociais e raciais e as diferentes formas de sociabilidade e formação cultural conhecidas ao longo da história. Ou seja, fora o uso ideológico para justificar regimes políticos autoritários e formações econômico-sociais exploradoras, raça não tem nenhuma utilidade válida para o conhecimento humano, não acrescenta nada.
Todavia, com tudo isso, o movimento negro insiste no uso do conceito de raça. Por que? Se raça teve um uso político para justificar praticas políticas e culturais horrorosas, ela pode também ser redescrita e reutilizada para provocar uma discriminação positiva. Ou seja, raça é o recurso cognitivo e político que nos leva a entender as razões pelas quais determinados grupos humanos dentro de um ordenamento social seja marginalizado e privado de acesso a bens, serviços, renda e ocupação. O uso de raça é contestado cientificamente, mas difundido nas praticas discriminatórias camufladas na sociedade brasileira. O que o MN quer é pocar a bolha dessa camuflagem e mostrar o racismo tal qual funciona no real. Então, por que não utilizar a forma como a própria sociedade nos vê para fazer transparente a nossa própria situação social e o peso da herança escravista que ainda carregamos?

Sergio Fonseca
Historiador

Ética e Política

ÉTICA E POLÍTICA
Sergio Fonseca
Historiador
Opensamento político moderno nunca mais foi o mesmo desde que Maquiavel abriu a temporada do realismo para explicar os próprios políticos como deveriam agir se quisessem continuar no trono. É claro que por intuição todo Político sabe como se manter lá, ou então sequer oderia ser considerado como tal. Político que se preza, pensamos nós hoje, tem cargo a disposição, verbas públicas polpudas e eleitores prontos a confirmá-lo o cargo quando assim necessário.A primeira coisa que Maquiavel observou na forma como se fazia política na antiguidade era que a pratica não condizia com os manuais do bom governo e do bom governante. Também na idade média o modo cristão de descrever a atividade política era muito mais uma aposta e, no fundo, um guia da bondade política do que uma descrição objetiva dos fatos. Por realismo, Maquiavel entendia um modo particular de descrever os fatos. A atividade política nada tem de nobre, eis a primeira lição que se depreende de seus estudos. Se ela não é nobre, podemos entender que estamos diante de uma sujeirada que não tem fim. Porem, quem assim o interpretou, errou feio. É evidente que Maquiavel não acreditava na bondade humana apregoada pelo cristianismo. Ele já havia observado que na própria igreja, nos momentos de substituição da sua autoridade máxima (o Papa), e não apenas nesses momentos, as movimentações e articulações para cravar o sucessor eram muito parecidas com a política e nada tinham de nobre. Eram intrigas, contra-informações, mentiras, armadilhas, golpes, violência, traições e assim por diante. Como então concordar que na política os homens pudessem agir de forma angelical? ficou então evidente para Maquiavel que as teorias políticas inspiradas no cristianismo não apenas não explicavam nada como necessitavam com urgência serem substituídas por outras, mais realistas e menos condescendentes com a idéia deque somos de natureza divina, portanto bons e justos por origem.
A política possui todos os ingredientes para ser considerada o centro das preocupações das sociedades modernas. É nela que se decide os projetos que irão nortear as ações dos agentes sociais. Maquiavel, cônscio, não da nobreza, mas da função fundamental da política, cuidou de identificar as estratégias e astáticas usadas pelos políticos para se conservaram no poder.
E foi por isso que ele tomou a precaução de separar a ética da política. Não porque concordasse com a sujeira, mas porque sabia que a política não é o resultado de nossas crenças, mas de lutas acirradas pelo poder. O caráter objetivo da política se revela nas situações nas quais os planos e propósitos dos políticos, mesmo indicando um grau de racionalidade elevado, não se cnfirmam na realidade.É que a política, como disse de forma categórica o filosofo e amigo pessoal do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, José Arthur Giannotti, possui uma zona cinzenta que é de pura irracionalidade tanto no sentido de que a ética não entra como na constatação de que a realidade está sempre a exceder os projetos.Maquiavel concordava e de fato exortou o príncipe a usar de todos os meios disponíveis e ao alcance das mãos para permanecer no poder. Inclusive se a única condição for matar a própria mãe para obter o desejado, então que assim seja. A herança do florentino é conhecida nos dias de hoje como maquiavelismo, uma espécie de filosofia que consiste em justificar os meios pelos fins. Logo, não há espaço nessa filosofia para princípios.
Karl Marx
Karl Marx, um maquiavélico pós-hegeliano, entendeu a política como luta acirrada pelo poder, mas acreditava .que por conta da divisão social entre proprietários dos meios de produção e os trabalhadores, o poder, através da força, migraria para as mãos dos primeiros que então organizaria a sociedade à sua imagem e semelhança. Marx, de forma muita hegeliana, atribuiu aos trabalhadores uma certa missão nobre e universal que os tornariam portadores de valores emancipacionistas. Nesse caso, Marx considerou o fato de que o poder, uma vez nas mãos dos explorados, poderia ser utilizado para o bem.
E a própria política, uma vez consumado a ação de elevação dos justos ao trono, Poderia ser dissolvida e substituída por iniciativas administrativas porque, de alguma forma, a política é irmã do poder e os dois são apenas modos de Manipulação e maquinação. O poder só teria por função, nessa fábula marxista, de manter uma parte da sociedade dominada. Quando cessa a dominação, não há mais razão para o poder existir e, assim, ele aos poucos definha.Maquiavel concordaria com muita facilidade com a tese marxista da divisão da sociedade entre os grandes que querem dominar e explorar e os pequenos que não querem nem ser dominados e nem explorados. Porem, dificilmente acompanharia o Marx na crença de que os trabalhadores ou outro grupo social pudesse, ao se apossar do poder, fazê-lo definhar. Aqui Maquiavel provavelmentedeixaria Marx falando sozinho.
Weber
Com isso, na visão marxista, na política não há lugar para princípios e nem para ações nobres. O que há são interesses ferrenhos se digladiando. A solução, é o uso do contra-poder, ou seja, um conjunto extenso de táticas organizacionais para permitir aos explorados tomar o poder.Também o sociólogo alemão Max Weber, logo mais, irá fazer uma distinção entre ética de principio e ética de responsabilidade para compreender a atividade política. Não é sem razão que ele foi considerado por muitos o Maquiavel da era do aço. Um pensador que tinha em alta conta a tal da realpolik como fundamento das ações do Estado num contexto retardatário no plano industrial.Weber pode ser tomado aqui como exemplo de maquiavelismo porque salta os olhos o modo como ele próprio concordou com certas ações agressivas do Estado alemão, quando em seus textos de teor mais acadêmico apoiava a liberdade. Uma contradição forte cravada no cerne de seu pensamento. Weber considerava os pacifistas, uma gente simplória e ingênua. A relação que ele estabeleceu entre liberdade e poder é única na história do pensamento, e mostra muito de suas afinidades eletivas com Maquiavel.Maquiavel facilmente entenderia a necessidade de um Estado forte para proteger a liberdade num contexto de disputa e concorrência acirrada entre as nações como foi a era do imperialismo. Podemos dizer também que ele facilmente concordaria com a afirmação de que não há poder sem perversidade e injustiça. Não que o ideal de justiça seja algo banal e inalcançável. A verdade é que a própria justiça para se fazer efetiva necessita do poder. E o poder não deixa os homens e as mulheres agirem sem as paixões e os interesses. O ciclo então se fecha quando constatamos que não há nada mais distante da justiça do que aparcialidade, os interesses, a corrupção, enfim, o poder.
Liberdade
Quanto mais aumenta o desejo da sociedade por mais liberdade, mais o poder ver aumentado os seus tentáculos, eis uma máxima que uniria tranquilamente Weber e Maquiavel. É que a liberdade precisa de proteção. E a proteção e a segurança estão no poder. Quando nos voltamos aos pensadores da política pós-Maquiavel vemos que todos eles, J. Locke, Hobbes, Montesquieu, Rousseau e tantos outros, ou pensaram em termos de um aumento do poder via delegação ou então uma diminuição via uma maior autonomia da sociedade civil. Em todos os casos, porem, e mesmo tomando um Rousseau que partia de uma idéia de uma suposta bondade natural humana, dealguma forma o poder precisa ser regulado ou regular.
O estado de natureza fictício que eles usaram para elaborar as suas teorias, tem um valor atual inestimado. Serve para decidirmos como entendemos a nós mesmos. Será que éramos bons e o Estado cuidou de nos corromper? ou éramos maus e vivíamos em situação de guerra e selvageria e o Estado pôs um fim nissonos dando segurança, tranqüilidade e bem estar material?
Para Hobbes, o formulador do grande Leviatã, o poder encarnado no Estado todo poderoso de fato deve se divorciar da sociedade para exercer a função pela qual foi criado: proteger a sociedade. É verdade que Hobbes, diferentemente de Rousseau, partia da idéia de que não havia nenhuma bondade natural entre os homens antes da civilização. Para ele, o homem segue sendo o lobo do homem. A delegação, em seu caso, parece um ato cego, um cheque em branco, como diríamos nós hoje, que diminuiria a nossa liberdade e transferiria o poder para as mãosdo príncipe. O leviatã funcionaria como um olho de guerra contra tudo e todosque atentassem contra a segurança de seus cidadãos.
J. Locke sentia arrepios diante de uma tal teoria política. Por isso, cuidou de fazer retornar à sociedade, o poder. Sabendo que não era possível uma sociedade existir sem o poder, não acreditava tampouco que o poder fosse tão nobre assim para que cegamente entregássemos a chave de nossas vidas em suas mãos. O poderprecisa ser controlado, eis o resumo das suas análises.
Em Rousseau, a Vontade Geral seria o povo exercendo diretamente os seus interesses. Todas as revoluções que ocorreram na seqüência justificavam seus propósitos com base na teoria de Rousseau, mesmo as ditas marxistas. E todas elas foram devoradas pelas taras do poder que fugiu do controle do povo para alojar-se nas mãos de grupelhos espertos e maquiavélicos. Além do mais, como disse o nosso falecido Otavianni, o povo é uma categoria sociológica abstrataque a rigor não existe.
No capitalismo triunfante, a preocupação com a imparcialidade da lei criou o consenso de que o poder seria um mal necessário e que de alguma forma tínhamos que submetê-lo e domesticá-lo. Esse processo não é obviamente algo tranqüilo e tampouco dado quando se alcança tal façanha. Porque, ao menor descuido, o poderaumenta a sua força sobre a sociedade. Ou seja, cresce e nos devora aos poucos.
A Ética hoje
Como Maquiavel não via muita utilidade na ética para entender o poder, hoje devemos nos perguntar se de uma sociedade que também dispensa a ética para substituí-la pela concorrência selvagem, pode brotar os impulsos para abrandar o poder.No tempo de Maquiavel, a sociedade parecia algo completamente diferente do poder. Em nosso tempo, a sociedade, por conta de inúmeras transformações, a cada dia que passa, fica mais homogênea ao poder, mais fria e calculista. Contribuiu para isso O Fim das Ideologias.

O Juridicamente Correto

Vocês sabiam que no mundo do direito há correntes de pensamento e ação que defendem o uso do juridicamente correto? Alguns até acham que é no direito que podemos ter um bom êxito nas redescrições semânticas. Na modernidade, como indica a tradição jurídica a qual Max Weber se filiou, tanto o individuo quanto o autor da ação são entes de direito, nunca objetos de apropriações, sempre sujeitos requerentes ou demandantes de direitos. É verdade que com base em algumas constituições nacionais, a questão do quem é o sujeito era um espectro reduzidíssimo. Mas, o que fizemos foi efetivamente ampliar esse espectro e não alterar-lhe o sentido. Só há direito quando estamos diante de sujeitos demandantes.
A filosofia, que entra no debate por conta do conceito de eu, demora até Kant para alcançar a esfera legisladora que o torna um sujeito de conhecimento legítimo. Em Descartes o eu está aprisionado numa rede de significações que deve retroagir até Deus para que a sua própria existência seja confirmada e validada. O eu aspira liberdade e autonomia, mas não tem fundamentos em-si. Kant deu-lhe os fundamentos na própria razão legisladora. É do eu que brota a ordem racional do mundo, foi o que provou com as suas três Criticas. Ainda que todo o mundo não brote do eu, o que irritará ao Fichte logo mais, a superfície habitável e conhecida, o assim chamado fenômeno, é obra legitima do eu. Kant é quem nos presenteou com o eu legislador. A partir daí ninguém mais irá duvidar da capacidade constituidora de mundos do eu ainda que sua pretensa unidade jamais tenha sido demonstrada.
Na seara da filosofia da linguagem, o eu articula a linguagem e pode assim descrever e redescrever o mundo. Ainda que obviamente com eficácia maior dentro de grupos sociais, indivíduos inteligentes exercem a capacidade de alterarem o modo como são referidos e requeridos frente a outros grupos e ao poder público e privado.
Hoje fala-se no direito humanista como sendo uma esfera do agir normativo que praticamente, eu diria, sacraliza o ser humano. Porem, o direito humanista não adentra o sistema normativo de uma nação com muita facilidade. Há disputas em torno do direito humanista, inclusive disputas lingüísticas, por conta de redescrições dos sujeitos de direito. Redescrições positivas porque fundadas em consensos democráticos espalhados pela sociedade. Através do direito é fácil identificar o grau de democracia que possui uma sociedade. Quanto mais ampla e reconhecida as praticas dos sujeitos de redescreverem suas experiências com o mundo, mas livre serão esses indivíduos.
É por isso que nenhum demandante de direitos pode ser identificado como elemento sob pena de se anular a própria eficácia do direito. No direito, os indivíduos são representados enquanto pessoas de direito que pelo simples fato de nascerem humanos já são os beneficiários. Qualquer outra referencia aos indivíduos, cai como descaracterização dos autores da ação. Atores da ação são válidos e é só por isso que podem demandar o direito. Mesmo que seja para serem penalizados. O direito humanista evidentemente que não pode suportar as teses da prisão perpétua ou da cadeira elétrica por uma razão óbvia. Há por detrás de qualquer aplicação de normas o objetivo educacional. As normas não existem apenas para disciplinar a sociedade e impedir uma guerra insana de todos contra todos; elas existem antes de tudo para humanizar os sujeitos com base no aprendizado com as perdas impostas pela aplicação de sanção ou mesmo a privação de liberdade.
Os sujeitos de direito estão blindados até que se prove, com base em amplo processo penal, tramitado e julgado e satisfeitas todas as possibilidade de recursos, a sua transgressão ou infração legal. Suspeito não existe. E a responsabilidade penal ou cívil por determinada ação é após o processo.
As conceituações e identificações jurídicas não podem prescindir de considerar o demandante de direito, pessoa ou sujeito de direito, e nunca apelidá-lo como referencia seja lá o nome que for usado.

Sergio Fonseca

COMO UM HISTORIADOR VÊ A BIBLIA

A Biblia é o maior best-seller da história do livro. Está disponíbilizada para cerca de 2.167 mil idiomas diferentes. Suas edições chegam a casa dos 2 bilhões de exemplares. Coisa de 85% da população mundial tem acesso a este livro que já conta com mais de 3 mil anos de vida, logo é uma anciã respeitável. Nunca sofreu qualquer baixa em suas vendas. É portanto um fenomeno de vendas e sobretudo um fenomeno cultural sem precedentes. É sobre este espetaculo cultural que modernos e pós-modernos travam a última batalha para saber afinal qual o lugar da Bíblia na diversificada biblioteca dos saberes que temos acumulado ao longo dos séculos. O que é um livro? a materialização de idéias, projetos, doutrinas e concepções de mundo. Artefato individual ou coletivo. Um produto intelectual que necessita de suporte material para circular. Se bem que com o mundo virtual, até a exigencia de suporte material cai por terra porque já existem os tais e-books. É, nos dias de hoje, também um artefato de consumo que incorpou técnicas e recursos de marketing e sofisticação gráfica para seduzir o consumidor. A Biblia, como o Livro dos livros, contém todas estas nuances sócio-culturais e, ao longo de sua história, sofreu profundas transformações importantes até chegar a ser o que é para nós hoje.

Em grego, Bíblia significa "dos livros". Ou seja, refere-se a mais de um texto e a um conjunto fantástico de autores, lugares e tempos distintos. Na Bíblia podemos encontrar de tudo, desde romance de suspense até investigação policial, passando por cantorias, lendas e exortações, e até, em tempos atuais, algo como auto-ajuda. É um Livro ficcional ou um relato fidedigno de eventos históricos? Os historiadores poderiam se utilizar dele para fazer ilações sobre o passado remoto e sobretudo sobre a pratica de vida de comunidades religiososas ou de confrontos politicos e etnicos entre diversos povos da antiguidade? É pouco provavel que a Biblia seja um texto histórico no sentido em que os historiadores do século XIX atribuiam a este termo.

Por conta da hegemonia dos historiadores positivistas, a Bíblia foi de fato relegada ao plano das narrativas ficcionais, mais próxima das artes literarias do que das ciencias humanas. Não continha o principal ingrediente para assumir o papel de reveladora de verdades históricas: faltava-lhe um método de trabalho e uma ferramenta objetiva de escavação de fatos. A Bíblia, na visão dos positivistas, era excessivamente subjetivista. Com a cultura pós-moderna, a Bíblia ganha novos olhares. Sobretudo para os pragmatistas americanos, não há sentido e nenhuma justificativa válida para mantermos os termos classificatórios dos discurso utilizados pelos positivistas. Sendo assim, a Bíblia, mesmo como discurso ficcional, deve sim ser tratada como uma obra válida, e, seus leitores, devem ser aceitos como interlocutores legitimos que encontram nela uma sabedoria que faz a diferença para a vida. Mais precisamente, os pragmatistas suplantaram a divisão entre discurso ficcional e cientifico, ao alocarem para o plano do privado o tipo de ensinamento que a Bíblia traz. Como a modernidade já havia feito a separação entre a cultura laica e a sagrada, cabe agora na pós-modernidade aceitarmos a Bíblia como mais um saber enriquecedor. Mais ainda: não há necessidade de nos apegarmos as disputas institucionais entre cientistas e teólogos. Como herdeiros destas disputas, podemos confirmar na pratica o bem que a ciencia fez a própria Bíblia na medida em que a libertou de preconceitos e dogmas que a torvam um saber intolerante e fundamentalista.

Todavia, ainda assim não creio que a Bíblia seja um documento histórico do modo como muitos sectários religiosos a interpretam. E aqui a critica não está baseada em um novo discurso positivista. Estou tentando argumentar que de fato a Bíblia ganhará mais adeptos e leitores inteligentes se for capaz de aceitar o lugar de uma sabedoria privada para a vida e não continuar com a pretensão de manter a rivalidade com a ciencia, tentando em alguns casos, substitui-la. É o caso do debate entre evolucionistas e criacionistas. A arquiologia pode confirmar vários relatos bíblicos, mas não pode endossar as pretensões espirituais que subjaz em diversas leituras. Podemos hoje ler a Bíblia como mais uma peça cultural da história da humanidade que se mantém ativa justamente por sua força persuasiva de fazer com que acreditemos, não de forma cientifica, mas de modo literario, em seus ensinamentos e portanto podemos nos satisfazer com a sua sabedoria. Não precisamos, se de fato somos leitores inteligentes, buscar provas extra-texto para confirmar a veracidade de suas assertivas. A Bíblia é um texto literario e enquanto tal deve ser lido e comentado. Não cabe à Bíblia tentar ocupar o lugar da ciencia moderna. Ela deve ocupar o espaço interior de nossas evocações e busca por sentido e valor para a vida. Creio que aqui ela é simplesmente imbatível.

Sergio Fonseca
Historiador

quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Marx Está Morto?

Na literatura ocidental, a morte de Karl Marx, o fundador do comunismo, já foi anunciada diversas vezes. O que pretendemos fazer aqui nesse artigo é separar o Marx dos marxistas. Assim, uma coisa é Marx, outra muito diferente, são os marxistas. O que acabou e já está em adiantado estado de putrefação é o marxismo dos marxistas e não o de Marx. Até porque o de Marx são um conjunto de textos escritos em períodos diversos de sua vida e sobre temas também diversos. Não se pode então, como quer José Arthur Giannotti, responsabilizar o Marx pelo o que ele não disse e não profetizou.
Os marxistas aderiram ao ideal coletivista achando que tal atitude se depreendia dos escritos de Marx. A minha hipótese é a de que Marx via no horizonte o coletivo como meio de emancipação do individuo. Com base em sua formação burguesa, Marx exaltava a força intelectual e a vitalidade política do individuo. Porem, numa ordem social dividida em classes sociais, o individuo seguia sendo uma ficção. Ele só poderia ser resgatado no romance burguês, na base da revolução social. Mas, a revolução tinha como compromisso devolver ao individuo as rédeas de sua vida e história. Tarefa que ela nunca cumpriu.
Eu pessoalmente creio que em Marx encontram-se elementos para se avançar nas definições sobre o capitalismo que sejam mais adequadas as transformações do mundo moderno. Nesse sentido, nenhum marxista pós-Marx conseguiu superar o paradigma produtivista do trabalho e as idéias simplórias de um mundo sem política, organizado com base na administração das coisas. A linha de Marx é a da critica da racionalidade burguesa, o que implica um debate muito sério sobre o ócio produtivo, a arte nos tempos da automação, as proteções às liberdades individuais e fundamentalmente o tipo de vinculo que queremos manter com o nosso meio natural.
Até os anarquistas que continuam sonhando com um mundo sem conflitos políticos patinam no gelo da burocracia estatal. Com os marxistas não foi diferente. Também eles achavam que tomando o Estado se podia alterar a ordem social, quando na verdade toda a aposta do Marx era no sentido de fortalecer a democracia na sociedade, primeiro através de um coletivo liberado de obrigações trabalhistas de aumento de lucros burgueses e depois o próprio individuo iria chutar o coletivo para fazer-se autônomo enquanto sujeito de sua própria vida. E para quê o Estado se os indivíduos são agora competentes para organizarem os seus desejos e necessidades?
Não foi assim que aconteceu na história. Os ideais coletivistas tenderam para mais opressão porque o individuo foi diminuindo a ponto de fazer os seus próprios desejos serem confiscados em prol de um futuro radiante de desenvolvimento e bem estar material. Como esse futuro não chegava, a repressão aos instintos e desejos individuais aumentava tornando a vida privada impossível. Quando não se aceita ser um apêndice do Estado e do coletivo, resta apenas a resistência e a incerteza da luta. Nenhum regime coletivista se mantém se não for através inicialmente da propaganda do futuro e depois, quando isso desgasta, da repressão brutal pura e simples.
Mesmo em Israel, onde os Kibutz são sinônimo da liberdade coletiva socialista, a sua morte iminente pode ser debitada nas insatisfações do individuo num coletivo excessivamente protetor e fechado. É o fim de uma era na qual se acreditava que o coletivo podia mais em termos de solidariedade e aproximação de pessoas. Ninguém consegue mais se contentar com uma vida monótona de afazeres compartilhados entre iguais num coletivo amorfo e despersonalizado, ou, como no caso da antiga URSS, sufocado pela força estúpida do poder.
O individuo irrompe na história como força do desejo de potencia de ser sempre mais e mais. Creio que o sonho de Marx quebrava o lacre do ideal coletivista. Marx era muito burguês para se contentar com ideais cristãos de solidariedade coletivista e por isso buscou na história moderna das revoluções políticas e tecnológicas os sinais de um mundo que aboliria o trabalho estafante e o domínio da sociedade sobre o individuo.

Sergio Fonseca
Historiador

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O meio Ambiente no ES

O Meio Ambiente Pede Socorro no ES

Com os recentes anúncios positivos sobre as perspectivas econômicas para os cenários futuros, os interesses ambientais devem entrar na agenda capixaba de um debate sério e transparente sobre que convivência com a natureza desejamos para nós e nossos filhos. A rota normativa já está dada em leis ambientais rigorosas e progressistas, porem, no campo político a iniciativa de fiscalizar e combater as agressões ambientais, estão preferencialmente nas mãos do Estado e a sociedade civil não está organizada para enfrentar esse que é o maior desafio político do ES. Nesse momento a educação conta muito, mas também essa tem o Estado como capital da direção do processo, deixando os sindicatos e a voz da sociedade fora da discussão. O meio ambiente deveria ser, juntamente com as políticas de inclusão, o vetor do desenvolvimento. O coro ambiental deve protagonizar o espetáculo no sentido de exigir a qualidade do figurino natural para as nossas roupagens da segunda modernização, que é tardia.
Outrossim, o meio ambiente é hoje uma agenda politicamente pesada por que certamente irá se confrontar com muitos interesses privados ferozes; a ganância da riqueza rápida e fácil pode no futuro se tornar algo de custo mais elevado do que a sociedade poderá paga-lo. O tema ambiental, assim como o da inclusão de negros, não está na agenda do Estado capixaba. Os conflitos entre interesses de preservação e interesses de progresso necessitam urgentemente serem acomodados em fóruns legítimos de poder e ação.
O Instituto Estadual de Meio Ambiente está sobrecarregado e ainda por cima patina numa montanha de requisições por liberalização de exploração e não consegue exercer a função de fiscalizador. O IEMA não vai in locu identificar as agressões ambientais. O IEMA está fechado na fala de técnicos burocratas desesperados, que não sabem o que fazer. Já a Assembléia Legislativa, o que faz, é apenas criar as tais fajutas comissões de meio ambiente na tentativa de adoçar a boca de alguns militantes. O Ministério Público ambiental, nem de longe alcança a eficácia e agilidade verificadas em outras esferas de atuação do órgão. E a velha Universidade Federal do ES tão homenageada em épocas preterias como mente da expansão industrial e urbana local, agora dá mostras de que não se moderniza, não entende que a dimensão mais fundamental da questão ambiental é a disputa política, inclusive por verbas para as pesquisas.
A grande mídia não sai da única posição política que conhece: a de assessoria de comunicação de Estado e empresa privada, por conta certamente dos anúncios polpudos. Ela não blinda a sociedade com uma opinião pública isenta e sequiosa das diferenças de perspectivas sobre a modernização que queremos. Por exemplo ela não mostra ao telespectador as empresas que poluem, as prefeituras que convivem com os abusos dos moradores sobre rios, lagos, terrenos baldios, encostas de morros, vegetações de restingas. Não mostra ainda por que os políticos não endurecem com as empresas poluidoras. São elas obviamente as grandes financiadoras das campanhas eleitorais dos dito cujos.
A democracia que a mídia local exerce é apenas a do reforço dos grupos organizados economicamente, logo, é a dos mais fortes. É por isso que poder público e empresa privada no ES são os únicos vetores da comunicação pública visíveis e reconhecidos como legítimos no debate da modernização.
Mas, o que deve ser feito hoje no ES é a ampliação dos fóruns públicos de debates. As feiras sobre meio ambiente, patrocinadas pelas prefeituras, devem ser vistas apenas como um complemento paliativo para a falta de iniciativas concretas do poder público.
A qualidade ambiental da Grande Vitória se degradou de modo acelerado nas duas últimas décadas do século XX e agora, nesse inicio do XXI, já dá mostras de que transformará a saúde do capixaba num inferno de Dante. Desse modo, até o setor de saúde que anda sobrecarregado com demandas infinitas, terá que se ocupar de doenças originadas da degradação ambiental. Ainda assim, o poder público faz vista grossa, aceita a imposição de um setor da sociedade econômica do ES e deixa na deriva os interesses públicos por qualidade de vida.
Os investimentos são pesados, porque irão movimentar a infra-estrutura do ES e agitam as bolsas de apostas dos mecenas do progresso capitalista. A crença é a de que esses investimentos irão criar a tão sonhada logística ideal para o fluxo de mercadorias e capitais.
O sistema econômico do Brasil passa agora no governo Lula por um choque de crescimento. O ES é seguramente o Estado que irá, nessa leva da nossa segunda revolução industrial, se posicionar como chave estratégica, jóia da coroa, manancial de oportunidades e descobertas, enfim, desejo de consumo de muitos governadores. Mas, e os interesses ambientais, o seu controle e fiscalização, como está e como ficará. Na primeira industrialização deixamos o debate sobre inclusão ser levado à deriva pelas graças da expansão econômica e sabemos bem no que deu. Era o tempo da ditadura. Agora, os interesse ambientais é que são relegados a uma baixa perspectiva para o progresso, tornando os interesses do capital privado e a ganância dos impostos estatais os únicos atores da modernização. Mas essa é a época da democracia, não podemos esquecer.

Sergio Fonseca
Especialista em Historia Política/UFES

Resposta ao jornalista capixaba fascista Uchoa de Mendonça

Uchoa,

Essa sua impaciência com a democracia é de fato sintoma da doença fascista. E não é algo novo na história. Também Hitler tinha impaciência com a democracia e por isso criou o nazismo, uma forma de governo que suspende as liberdades e as divergências. Carlos Lacerda, o nosso derrubador de presidentes, não suportava os embates políticos da era Goulart e junto com Magalhães Pinto e Adhemar de Barros, conspirou contra um governo legitimo, nascido das urnas. E deu no que deu, na porcaria fascista-militar. É isso o que você busca? De fato, você o que faz é tentar atualizar o Lacerda, fortalecendo a critica política fascista que o Brasil já superou.

Porem, diferente de você, Lacerda depois fez meia-culpa e junto com um ex-presidente que foi por ele muito maltratado, O JK, assumiu a dianteira da critica ao regime militar de 64. Hoje as elites do já cansei a qual você representa de modo exemplar, quer derrubar o presidente porque não tolera a entrada dos pobres na agenda governamental. Qualquer tentativa de dividir a riqueza através de um forte incremento de políticas públicas e ampliação das redes sociais de proteção, logo é interpretado como incompetência. É por isso que vocês, os falsos letrados, insistem tanto numa critica vulgar ao Lula dizendo que ele é analfabeto e que o problema de seu governo é a sua falta de escolaridade. É a velha tentativa de fazer a opinião pública confundir alhos com bugalhos.

Sobre a suposta propagação dos quilombolas, devo dizer-lhe que há critérios normativos, pautados em estudos antropológicos e históricos, que permitem com segurança e validade identificar os autênticos representantes de quilombos. Sabe o que assusta a você e ao senador Camata, é o fato de que o Brasil durante todo o seu regime republicano não ter se ocupado com o problema das terras dos remanescentes de escravos. Agora o Lula desenterra o cadáver e mostra que são milhares em busca das reparações.

Estude um pouco mais, Uchoa, e se informe para escrever aos seus leitores. Se precisar de consultoria nessa matéria temos bons profissionais. É só falar...

Fonseca

Coisas do Brasil desigual

Estou iniciando esse blog com o interese de debater e refletir sobre os problemas sociais e as desigualdades raciais do Brasil. As opiniões são inteiramente minhas, porem baseadas em livros e artigos que leio diariamente. Espero que gostem e fiquem a vontade para participarem, criticando e dando sugestões.