terça-feira, 2 de outubro de 2007

BRINCANDO DE FILOSOFAR: MONTEIRO LOBATO

Relendo algumas coisas de Monteiro Lobato nessas férias de final de ano fiz o seguinte questionamento: Ele não seria mais produtivo, no trabalho com as crianças, do que obras especificamente filosóficas? Afinal, o modo como as crianças lidam com os objetos filosoficos, a suposta imortalidade da alma, o corpo e a sexualidade, a liberdade, Deus, o tempo, as lembranças, a violencia e a agressividade, o sentido da vida e a morte… é muito especifico e não haveria como elas próprias fazerem filosofia no sentido clássico da expressão porque isso ao invez de enriquecer, empobreceria a criatividade. É uma verdadeira camisa-de-força submeter crianças e adolescentes ao ambiente sisudo, hermetico e, em alguns casos, hirto, dos mestres pensadores da humanidade.

Os jovens só podem acessar o universo filosófico por meios metafóricos, caminhos trocados, espaços ubíquos, universos densos, enfim, mundos ficcionais. Apenas desse modo eles podem partilhar de dúvidas, apreensões, medos e mistérios próprios das indagações filosóficas.

Então, isso tudinho não está já no Sitio do Picapau Amarelo? A Emilia com o seu faz-de-conta, o Pedrinho e a Narizinho, com o heroismo e a bondade, a Dona Benta com a habilidade narrativa e um sentido muito nosso de falar sobre a História Universal, a Tia Anastácia com a sua culinária encatada, o Tio Barnabé com suas histórias acabrunhadas, a Cuca com o seu desejo mórbido de vingança e ódio, o Rabicó com a gula, o Visconde com a sua sapiência e por aí vai, podem conduzir, e efetivamente tem conduzido, as crianças para um mundo mágico no qual as questões filosoficas estão ali, mas não se mostram como tais.

Nas conversas com os meus filhos, me convenci de que a filosofia para crianças é a literatura. Na verdade, a filosofia de adultos, se é que podemos falar assim, é no fundo boa literatura. Assim como a teologia, a boa literatura carrega no sangue o DNA filosófico.

A nossa literatura não fica a desejar nesse quesito. Quanto que a filosofia ganhou com o tema da loucura em O Alienista de Machado de Assis? A bazófia, a ironia, os custumes politicos e a racionalidade da modernização, foram temas presentes nas grandes obras literárias brasileiras.

O nosso Lobato é filho dessa grande tradição nacional. Há vários trabalhos enfocando as influencias intelectuais em seus textos. Para o meu interesse, cumpre apenas destacar que ele é o nosso filósofo da infância. Soube como ninguém ensinar filosofia a mais de uma geração de moleques e molecas brasileiras. É simplesmente impressionante como que ele, lá pelos idos de 1920, tratava a criança enquanto tal, sem descer a trivialidades e banalidades com que até hoje os programas infatis na TV se referem aos "baixinhos". O Sitio do Pica-Pau Amarelo, diferentemente de uma imbecilização generalizada da infancia, é um texto sem caretice, e com magnificência dobra os tempos.

O tempo, que frequenta as principais obras filosóficas ocidentais, é alí um objeto estranho, parece servir aos propósitos dos homens quando na verdade evidencia nossas maiores apreensões que é o medo do indeterminado, do misterioso e do acaso. Emilia acredita burlar o tempo e joga a responsabilidade negativa dos acontecimentos aos adultos que com sua caretice transformam tudo em fardo e desencanto. Ela assume a função positiva de encantar o mundo e é muito bem sucedida pois usa o pó mágico como libertação.

Porem, o sucesso não é na forma como ela acredita, mas na sua própria impossibilidade de dominar os acontecimentos. Isso faz do seu personagem o protótipo do eterno desejo infantil de querer crescer sem deixar de ser criança. O paradoxo da tentativa egóica de freiar o tempo que uma plêiade de autores tratou como forma trágica de existirmos. É da natureza da criança querer o impossivel, tentar conciliar o inconciliável, desejar o inalcançavel.

Os adultos, é verdade, também querem congelar o tempo. O que é o sucesso da industria da plástica-estética se não a recusa da passagem do tempo marcada nas rugas e na esclerose? As crianças, porem, não querem congelar um tempo real, elas querem manipular o tempo da fantasia, um tempo que não está aqui, mas que vive na imaginação, um tempo louco e maravilhoso. Toda criança ao ser criança nega a suposta ordem lógica do mundo criada pelos adultos que um dia elas serão. Elas negam sempre a realidade que lhes agredi e machuca. Assim, são senhoras do tempo e da realidade.

Mas, o pó não é exato, encrenca, como na vida, justamente na hora em que mais se precisa dele. De forma intempestiva, o tempo faz da impaciencia de Emilia um antídoto contra a sua própria arrogancia que a impede de entender que a vida não se deixa manipular ao nosso bel prazer, que a vida não tem lógica e a existencia, segundo J.P.Sartre, navega como um barco a deriva.

O mesmo tempo que um dia transformou o Menino Maluquinho do Ziraldo num cara legal, deixa Emilia perplexa e o leitor com a pulga atrás da orelha quando engana a bonequinha de pano que tudo pretende saber e fazer.

Diferentemente de Peter Pan, para quem ser criança faz congelar o tempo, no Sítio o tempo não pára, as crianças podem avançar ou recuar conforme uma ordem mágica que a narrativa de Dona Benta torna disponível mediante o sabor da leitura e o poder da imaginação. E é apenas no reino encantado que jogar com o tempo é possível e não traz consequencias. O tempo é ironico, paradoxal e contraditório na vida. Na imaginação, é uma nave, que tem o seu sentido definido pelo prazer da brincadeira.

Assim, o mundo dos adultos fica diametralmente oposto ao das crianças. São as crianças que passam a ensinar a filosofia, ao seu modo, porque só elas conseguem, pelo poder extraordinario da imaginação, e não há filosofia sem poder imaginativo, falar e vivenciar o pensamento filosofico. O lúdico, é a vida como experimento. E como disse o pai do pragmatismo americano, Charles Sander Pierce, é próprio do experimento a possibilidade de não dar em nada.

Ninguém, portanto, pode alegar que ao experenciar não sabia que estava embarcando numa viagem que poderia não dar em lugar algum. Como ele dizia, ciencia é uma forma de vida. E vida é uma forma de experenciar o mundo. As crianças são as primeiras a entender tal enunciado pragmatista porque lidam com o mundo a partir do lúdico que gira a vida, o tempo e os sentimentos para diversas direções possíveis.

O Menino Maluquinho, que é um bom exemplo de experimentos fantásticos com a vida, quando teve que vivenciar a dor da separação dos país tratou logo de inventar uma teoria maluca dos lados. Ele criou varios lados para poder acomodar o seu amor pelos pais e não ter que se dividir e escolher entre um e outro. Disse: cada lado tem o seu lado e eu sou o meu próprio lado.

Essa era a ordem possível que ele inventou diante de um mundo agora despedaçado. Não sem ironia, foi diante do tempo que o Menino Maluquinho percebeu ser um cara legal. Como frizou Ziraldo, ele não conseguiu burlar o tempo real. E o que aprendemos com o Maluquinho? Que não podemos substituir indefinidamente a realidade pela imaginação.

Nós, figuras impacientes com o lúdico, atravez da força tentamos fazer as crianças entrarem para o um mundo chato, careta, desagradável e desencantado. Nosso mundo é inflexivel, não dobra, não vira, não muda de lado. As crianças resistem, fazem caretas, corpo mole, dengo, pirraça, inventam teorias malucas, e, nesses atos, fazem filosofia, jogam os jogos complicados da existencia humana.

Nós achamos que o nosso mundo possui uma ordem eterna e as crianças não têm o mesmo entendimento. Como são mais frágeis que nós, são obrigadas a aceitar uma ordem que nós próprios teríamos dúvidas caso um dia alguém perguntasse, a final para que serve um tal mundo. Diria Emilia, para nada.

O próprio Sitio do Pica-Pau Amarelo como obra ficcional é já um objeto filosofico maravilhoso, porque é misteriosa a razão dele permanecer como encanto para gerações de crianças que vivem no mundo moderno weberiano, burocratico, absolutamento desencantado, sem vida espiritual, desacreditado de utopias, sonhos e ideologias.

Hoje a crença no homem está em baixa. Além de termos transformado o planeta numa grande lata de lixo, temos sido com nós mesmos injustos e incompreensíveis. Ora, Emilia já havia entendido tudo isso e proposto como saída convidar os adultos a brincar em seu jardim do faz-de-conta. Aqui os adultos poderiam lembrar de coisas maravilhosas da infancia que foram perdidas, mas que são imprenscindiveis para cultivar nossa humanidade.

E a coisa mais maravilhosa, de todas, na infancia, é a imaginação, o faz-de-conta e a brincadeira, que são soltas, livres, delirantes e irracionais. Lembro como o sabor da manga me conduzia para mundos infinitos, cheios de maravilhas e encantos. O cheiro da terra molhada, depois de meses sem chuva e com sol forte, me deixava simplesmente extasiado. Cheguei a comer a terra na tentativa de trazer para dentro do meu corpo aquele cheiro estonteante, efusivo e mágico. Hoje, cheiro a terra molhada, lembro da infancia, mas não experimento mais aquela sensação maravilhosa de prazer libertário do corpo, de magia encantadora. Hoje é um cheiro desencantado. A criança que havia dentro de mim, hoje não sei mais onde encontrá-la…

É o faz-de-conta que humaniza. Emilia explicou tudo isso direitinho e melhor do que qualquer filósofo ocidental. Não entendo porque os adultos das academias não conseguem sequer ler a Emilia, que dirá conversar com ela!

Poderíam, se assim o fizessem, finalmente entender que a Emilia, que é um presente de Lobato para todos nós, uma demonstração de sua generosidade, grandeza e genialidade, é o ponto de abertura da cultura que nos permite entrar para jogar com o tempo e a vida.

Quando li pela primeira vez Lobato tive a firme convicção de que se tratava de um rei da imaginação, de alguém que possui a Chave do Tamanho, talvez mais do que Lewis Carrol.

Diferentemente de Alice do País das Maravilhas, um mundo maluco e irracional, no qual as coisas estão fora de ordem e parecem de cabeça para baixo, Emilia pensa possuir a chave do mundo. Na sua imaginação, o poder de lidar com um tal mundo é propriedade sua. No decorrer das narrativas, porem, ela se mostra tão impossibilitada quanto Alice. Porem, finge saber e fazer o que não sabe e o que não pode. Ainda assim, Emilia e Alice são muito parecidas. Elas nos ensinam que só podemos viver uma vida legal se soubermos jogar o jogo do tempo e da vida. E isso não é fácil, como sabemos todos nós adultos.

2 comentários:

Um Negrão n'África disse...

Eu até concordo que os jovens e crianças se beneficiam mais de conceitos filosóficos via forma lúdica..., mas ao visitar críticamente a obra de Monteiro Lobato (hoje sabidamente um racista científico, que publicou entre outros o livro "O Presidente Negro" tremendo fracasso nos EUA e que levou sua editora à falência), há que se perceber que muitas mensagens supremacistas e reforçadoras de estereótipos negativos estão lá ..., prontas para se fixar no subconsciente das crianças e jovens..., será que isso é desejável ???, creio que não..., ML não é leitura para pessoas sem senso crítico formado...

Calig, Lig e Bobóli disse...

Juarez,
Eu como defensor da causa negra concordo com voce. Porem, como amante da filosofia e da literatura não acho que o politicamente correto deva ser o único critério para avaliarmos as obras de um autor. Por isso, continuo achando o Lobato um ficcionista espetacular.
Um abraço
Sergio Fonseca