domingo, 3 de julho de 2011

O Futuro da Natureza Humana de Jürgen Habermas

O que devemos esperar moralmente da biotécnica?
O filósofo alemão Jürguen Habermas ficou conhecido na Europa, nos EUA e no Brasil em função da sua "Teoria da Ação Comunicativa", um calhamaço de mais de 1000 páginas, publicado em dois volumes e mais acréscimos, que provocou um verdadeiro terremoto ao liberar espaço para as criticas sofisticadas ao marxismo ortodoxo, conter o ímpeto anti-modernista dos frankfurtianos e pôr limites nas pretensões da filosofia alemã de só conversar com os seus pares.
Ele quebrou o lacre provinciano do pensamento europeu e revelou que da América estava saindo as coisas mais importantes em termos filosóficos. Enfim, disse, em tom um pouco empolado, mas rigoroso e sério, que filosofar exige uma boa dose de clareza e prova empírica. Um bom texto filosófico não pode ser algo criptografado como era costume entre os alemães. Habermas começa lá atrás com Pierce, do pragmatismo, até chegar ao debate com Rorty, Davidson e tantos outros. A teoria da ação comunicativa, em poucas palavras, atualizou o pensamento de esquerda indicando a necessidade do diálogo com outras fronteiras da cultura intelectual moderna, principalmente o pragmatismo e o liberalismo.
Ele movimenta o ambiente filosófico agora com uma discussão sofisticada acerca das implicações das pesquisas genéticas para a integridade moral da espécie. "O Futuro da Natureza Humana" toca esse tema de forma muito peculiar pois vai ao encalço da problemática que vincula a reflexão sobre o iluminismo e os destinos da razão ocidental na base da técnica programada. Ou seja, Heidegger estará lá, na ponta, à espera de um passo em falso do combatente pela razão.
As terapias genéticas haviam posto à disposição dos seres humanos possibilidades regenerativas dos tecidos nunca antes vistas. Com a biotécnica, porém, estas possibilidades se amplificaram ao ponto de o próprio conceito de humano se ver ameaçado. Trata-se da disponibilização de uma técnica cientifica que reproduz seres humanos. Projetistas, os designers, com orientação de pais interessados, projetam seres humanos com todas as características orgânicas nossas conhecidas, porém, previamente definidas. O projeto do parque humano ou da colônia humana parece estar em vias de aparecer. Mas, Habermas não segue esse caminho interpretativo, obviamente. Ele tenta reconectar a disponibilidade de uma técnica programada para construir "protótipos humanos" ao liame da moral e da ética publicamente articuladas. Os valores do humanismo aqui são bem vindos pois apenas com eles podemos ter lastro para saber onde queremos ir com a técnica de manipulação de protótipos humanos.
Na física neoclássica, com a exploração da energia atômica, se pôs à disposição dos seres humanos uma estupenda capacidade de destruição com base na manipulação dessa energia. Provou-se em 1945 efetivamente do sabor do fruto da árvore proibida. Isso parecia tudo e os pessimistas de plantão estavam convictos de que a ciencia havia chegado ao monstro que somos e que se escondia por dtrás de libelos e cartas de intenções. De que somos capazes quando temos disponíveis poderes e técnicas nunca antes imaginados? Eis os temas do debate filosófico de época. O que temos agora em pleno século XXI é a disponibilidade de técnicas genéticas que podem alterar de forma pre-fabricada os conjuntos humanos. Em outras palavras, estamos intervindo com base num plano racional e planejado de ciência e técnica, no nosso próprio corpo. Que interesse o poder pode ter nisso? os intereses economicos, políticos e raciais estão na espreita!

Heidegger e o Humanismo

Mesmo Heidegger, depois de toda a porcaria do nazismo, lá na floresta negra, num silencio irritante, apelou para uma Carta ao Humanismo tentando ver até onde a sua primeira critica ao mundo tecnicizado poderia ir caso o humanismo pudesse ser reposto, ainda que artificialmente. É óbvio que ele testara também os efeitos das denuncias sobre o seu envolvimento com o nazismo. Como pôde o maior pensador do ocidente se envolver com a execução de uma ideologia tão medíocre e ao mesmo tempo monstruosa?
Não era tudo. Agora, em pleno século XXI, a engenharia genética permite ao seres humanos brincarem de Deus, isto é, permite que a nossa própria natureza seja reproduzida de modo livre, contando apenas com a nossa vontade e o nosso poder técnico-científico. A explosão e tontura causadas pelo poder técnico-cientifico-militar que o nazismo disponibilizou fez Heidegger tremer o seu dasein num solo minado em que a cultura caia de quatro ao poderio em voga. A técnica genética pode fazer com que os apelos por um mundo melhor e um novo homem sejam efusivamente interpretados a partir de uma linha de produção de protótipos humanos administrada pelo mercado de ações financeiras.
Transitamos, então, do poder despótico da física neoclássica, usada por governos ditos democráticos e com o argumento de que tínhamos que parar o inimigo da civilização, para o saber claro, distinto e limpo da genética pós-moderna financiada pelas bolsa-de-ação. A cola mágica da atividade cientifica com o financiamento privado de fundos de pesquisa direcionam o dasein para o abismo de uma ciência que segue cega pela vontade de saber e de verdade.
Há um hiato entre a física neoclásica, incluindo a teoria do caos e o princípio da incerteza de Heisenberg, e a técnica genética de reprodução controlada e induzida. Tal hiato pode ser descrito como o limiar da civilização e a prova pratica da teoria da evolução que ratifica o poder do mais forte sobre o mais fraco. A física detinha um poder, digamos, externo. A genética implica um poder interno pois permite o controle e a indução para a formação de seres vivos a partir de planejamento racionalizado.
Mas Habermas pegunta, perplexo: será que a disponibilização desta técnica de reprodução humana não afetará negativamente nossa auto-compreensão ética? Será que temos o direito de projetar seres humanos e, assim, privá-los de suas escolhas reais, uma vez que decisões genéticas, ao contrário de influências do meio, são irrevogáveis?
Jocoso talvez fosse se Heidegger enfrentasse o Habermas diante de um tribunal que tivesse por objetivo decidir sobre os limites da técnica na vida humana. Afinal, não foi Heidegger quem deu o ponta-pé inicial para desmoralizar a civilização moderna acusando-a de ter esquecido do ser para promover a coisa e a técnica imunda da ciência cartesiana? Habermas deveria invocar Kant para apoiarem um tribunal que julgasse o objetivismo canhestro da ciência e da técnica e as falsas pretensões humanistas de intelectuais pós-modernos. De certo que Foucault difere em muito de Heidegger e do parque genético ou mesmo do super-homem. Resta saber onde alocar Nietzsche nessa história escabrosa!
Porém, Habermas prefere o debate liberal, a esfera pública emancipada e aposta as suas fichas em nossa capacidade de entendimento mútuo e de afeto humanitário.
Leiam o livro e vejam nas entrelinhas que há muito mais coisa em jogo.
Sergio Fonseca
Historiador

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