terça-feira, 5 de julho de 2011

O Historiador e a Pós-modernidade

De Habermas podemos passar a considerar o impacto da revelação da pós-modernidade no contexto historiográfico de pensamento e pesquisa. Os historiadores ficaram sabendo da pós-modernidade a partir das discussões sobre o presentismo, o antiquário e a genealogia. Certamente, foi de Foucault, pelo menos em França, de onde sai as primeiras floradas do campo de um saber que virava-se, inusitadamente, à razão em tom de denuncia e insatisfação. Também o objeto agora é fragmento. As fontes apontavam para a socialização privada de indivíduos e coletividades. E, naturalmente, o poder era o alvo das investidas foucaultianas na história.
Foucault inaugura a pós-modernidade ao fazer uma operação de pensamento historiográfico até então pouco apreciada pelos profissionais de Clio: desfazimento. Em termos mais precisos, Foucault operou a desfamiliarização do conhecimento histórico ao voltar-se para o passado assentado na denuncia do presente. Tudo é o presente, e o passado é natimorto. E se agora se pergunta pelo o que houve no passado, de Foucault se pode ter uma única resposta: a presentificação faz do historiador um antiquário paradoxalmente evanescente. Os Usos e Abusos da História, de Nietzsche, serviu-lhe de inspiração.
Na genealogia tem inicio o tribunal que irá examinar o saber histórico do examinador. O olhar da história tinha, agora com ele, os dispositivos de desconstrucionismo que lhe faltava. O genealogista é um desconstrutor, um desfazedor de lugares comuns do saber. E isso foi na história uma revelação. Uma iluminação. De fato, Foucault parecia levar luz ás trevas da razão. Para tanto, ele procedeu ao trabalho de refazer o caminho que levou a razão a pavimentar com uma linguagem especial e científica a modelagem de seus fatos, métodos e técnicas de saber.
A linguagem constituía o homem. Isso ele trouxe de seu mergulho na tradição filosófica do ocidente. Levado por mãos nietzschianas, ele pode flagrar o momento exato em que uma linguagem nova inaugurava o homem moderno. Talvez sem ter plena consciência que navegava em águas turvas e miraculosas de Ser eTempo, o arqueólogo se aproximava perigosamente do instante do Big Ben historiográfico no qual os objetos e toda a aparelhagem mental de uma ciência são montados. A modernidade transparente deu-lhe, como fato extraordinário do pensamento que nascia, a ocasião e os meios para olhar o passado não mais como um artista cultor de uma hermenêutica clássica, mas como um operador de máquinas que pretende mexer nos dispositivos constitutivos de poder.
Todos sabem do assombro que brotou das revelações bombásticas foucaultianas a respeito dos presos e das prisões, dos loucos e dos manicômios, do sexo e da sexualidade como lugar permitido de se fazer e falar de sexo. Mas, fundamentalmente, a sombra maior da maldição foucaultiana recai sobre a constatação tácita de que o poder pairava em todos os lugares, que em fios de banda larga, em redes roteadas e gerenciadas, em IPs identificados e familiarizados, o poder se capilarizava para alcançar o alvo, para exercer a tirania da onipresença totalitária. Logo mais, Foucault esclareceu que o poder é produtivo e que ele não apenas controla e mutila, mas configura e põe em movimento os corpos e seus desejos.
O saber histórico, como uma modalidade de cientismo moderno, está contaminado pelos desejos de poder da razão. Eis as conclusões a que chegam o historiador esquisito da genealogia. O modo estranho, muito estranho, de fazer história de Foucault ganha estrada. Para onde se olhava, na década de setenta e oitenta, se via um genealogista desfazendo das camadas que se sobrepunham aos eventos que, qual as sendas perdidas, se indagava pelos escombros que encobriam as vitimas da história do poder. Vitimas que mais lembravam os personagens de um filme de terror que cola no vilão uma culpa que é do mocinho e da mocinha: Pois é da natureza do poder foulcaultiano atuar como ancoragem de valores que podem estar em qualquer lugar e via de regra estão nas mãos dos mais fortes. Obviamente, não cabe falarmos em vitimas se estamos tratando de uma historiografia de remodelagem do poder, do saber, da verdade e da justiça.
No Brasil, essa denuncia da razão e do poder foi recepcionada pela historiografia marxista de esquerda que achava-se, de algum modo, desgastada, por infinitas investidas em estruturas visíveis de poder econômico, e que, não apenas perdia a beleza e a sedução da apresentação e da narrativa, como também não tinha mais para onde prosseguir se não fosse bater pé na critica do modelo escravista e do capitalismo selvagem, desde a década de 1950.
Houve tentativas de juntar Marx e Foucault numa denúncia da exploração econômica de uma modernização desigual. Mas, é evidente que Foucault não podia ver nos explorados nada mais do que eles tinham para oferecer: uma esperança de que um dia poderiam, tanto quanto os seus algozes, exercerem o poder de forma implacável. Foucault já vinha da critica ao poder totalitário soviético que pegou a esquerda francesa de calças curtas!
O original na critica dele é que se podia visualizar num contexto de vivência a história das relações sociais e não apenas um movimento brutal de forças empurrando os homens de acordo com os seus interesses de classes. Um mundo cultural podia ser visto e sentido pulsar nas veias dos atores sociais que já não eram mais marionetes dos interesses cegos da infra-estrutura econômica Tampouco eram autômatos que apenas reproduziam em nível de superestruturas os movimentos do capital.
Os atores foucaultianos mantém vínculos de produtividade com o poder. Isso os torna mais sedutores aos historiadores com veias de aventureiros que perseguem mais o mundo dos humanos do que as formas estruturais da potencia de fazer e desfazer do poder. Pois como sujeitos produtivos de um poder inquietante, os atores históricos não podem ser vitimizados ao bel prazer de uma ideologia, muito embora também eles são agarrados pelas volúpias insidiosas de auto-afirmação do poder. Desde o momento em que se instaura, o poder deixa para trás suas insígnias de controlador oficial da administração pública para infiltrar-se nas consciências pecaminosas daqueles que transgridem as regras sociais, mas morrem de medo por fazer o que fazem.
Se a história é feita por todos aqueles que de uma forma ou de outra mantém vínculos com o poder produtivo, então não é mais correto deixar a história ser levada pelos julgamentos morais ingênuos de que podemos captar a verdade do que foi e a a justiça do que não se cumpriu. Não há justiça na história, porque não é possível apreender o homem sem os dispositivos de poder que o constitui. O arqueólogo e o genealogista estarão sempre de prontidão para que novas camadas de resistência ao poder-constituinte possam ser remexidas e trazidas à tona depois que a normatividade do que é certo e errado, justo e injusto, instaura-se. Aí tem início uma nova guerra na história para se saber o que foi soterrado na batalha da vitória da verdade e da justiça que novamente passaram a se impor. Ao historiador pós-moderna interessa saber dos marginais das politicas do poder, da verdade e da justiça. Quem e de que modo ficaram às margens dos novos valores que brotaram da derrota de outros modos de vida. O ato de pisotear os mortos é a forma encontrada pela verdade e pela justiça para se auto-afirmarem e varrerem a história com a pureza e o novo. Foucault não se ilude com a verdade e com o poder, mas também não acredita mais numa verdade límpida e pura e num poder justo. O destino do genealogista é a inquietação permanente.
Sergio Fonseca

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