sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

HEGEL: O REAL É MESMO RACIONAL?

A frase mais famosa da filosofia é a de Hegel: o real é racional, e o racional é real. E foi essa frase que lhe granjeou o título de filosofo conservador. Vou tentar aqui mostrar porque Hegel não deve ser tido como um filosofo conservador, não, se a base da argumentação for a sua filosofia do direito.
Curiosamente, o livro de Hegel que mais irritação causou, mais estímulos políticos produziu, não foi a Fenomenologia, obra revolucionária que trouxe a teoria do processo para dentro da filosofia, não foi ela, mas o "Princípios da Filosofia do Direito". O Estado, aqui, é elevado ao momento máximo da tomada de consciência da modernidade. O Espírito, em leis, faz-se carne!
Antes de tudo, é preciso saber que Hegel não diz o que deve ser, mas procura compreender o que é. Sem essa intelecção a piori, o "Princípios..." torna-se um exercício vazio de moral burguesa. Que é a forma como certos intelectuais interpretam a "crise moral da política de esquerda".
Hegel desconfiava que naquilo que é está a chave para aquilo que deve ser. O dever ser não é exógeno ao processo, ele sai de dentro do que é, mas apenas na condição de que o que é não seja confundido com aquilo que você deseja que seja.
Eu não consigo ver proposta de caminho filosófico mais promissor e rico do que essa do Hegel. Não existe, na filosofia, nenhum filosofo que assuma a abstração de modo assim tão aberto, tão positivo. Nele, ela não é apenas ponto de partida, mas também ponto de chegada para o pensamento. E, no entanto, Hegel é o filosofo mais concreto que eu já li em minha vida. A concretude do mundo, nele, parece ser o resultado de um longo e complexo processo de abstração.
Mas, calma! Vamos seguir mais devagar nesse filosofo, que não estava disposto, nem um único minuto, a facilitar as coisas para a gente. O voo de Minerva parte ao fim do dia, não há razão para que voce acredite que possa compreender o processo quando ele apenas desabrocha, ensinam os interpretes de Hegel.
Veja, antes, onde você está no processo, depois tente observar os seus links com o tempo de sua inserção no mundo. A partir daí, você deve entender que a contradição ou a mediação dos contrastes é o ambiente em que se encontra o sujeito da história de Hegel. Ou seja, Hegel movimenta-se filosoficamente num solo movediço, nada é o que parece ser. Esse é o mundo de Hegel, continua sendo o nosso!
A fama de conservadorismo do "Principios..." é inversamente proporcional a fama de revolucionário da "Critica da filosofia do Direito de Hegel", escrita por ninguem menos do que Karl Marx. Enquanto o velho Hegel é jogado na dispensa da história como um autor que deu a sua contribuição ao pensamento, mas que a partir daqui, do processo em curso, a sua filosofia não mais faz avançar, faz recuar, enquanto isso, Marx, passa a ser tratado como o pensador que sabe como fazer para inaugurar a racionalidade do mundo, antes que a falsa racionalidade mitifique o processo histórico. Troca-se, assim, um pensador conservador por um revolucionario na guia da história.
Mas, qual o contexto político dessa troca? A primeira metade do século XIX. A Alemanha dividida, rural e com uma classe política sem credibilidade. A esquerda hegeliana achava que Hegel via um mundo que não existia, só na cabeça dele era real. Daí a identificação total entre realidade e racionalidade, diziam. Eles estavam certos, facilmente Hegel concordaria com eles. Os motivos é que são outros. De fato, Hegel elevou o Estado a uma condição que não existia na realidade alemã de época. Os hegelianos de esquerda não viam a racionalidade que Hegel dizia haver no mundo.   
E aí é que está localizado o nosso problema. A racionalidade do mundo é a mais pura abstração do pensamento. Essa frase lapidar, pode ser retirada dos textos de Hegel com muita facilidade, em quase todos eles. Na verdade, a racionalidade é um modo hegeliano de tratar as contradições do processo em curso. Ela não é imune as vicissitudes do processo, porque nasce já contaminada com o fato de que o processo não se mostra no inicio, mas no fim. Logo, a racionalidade apresenta etapas contiguas ao processo de racionalização do mundo. Tudo aqui é precário, ou prosaico, antes que a razão se vê como autora do mundo e cuja narrativa é ela quem produz. Pôr ou não poesia no mundo? Isso é o prosaico, o dilema estético da filosofia da história de Hegel.
Agora podemos entender a frase lapidar contida ali no "Princípios...". Sempre que você olha para o mundo, o que você vê é a racionalidade. Se você vê um mundo real, então ele é racional, sintetizou Hegel. Pronto!  A racionalidade do mundo é o processo do mundo. Processo pelo qual ele, mundo, torna o que é.
Quando Hegel foi acusado de conservadorismo com essa frase, pela esquerda hegeliana, os seus discípulos acreditavam que a racionalidade do mundo não continha toda a realidade vivida, mas apenas aquela que resultasse da ação dos revolucionários atuais. Mas, todas as ações, revolucionárias ou não, eram racionais simplesmente porque estavam no mundo e não na imaginação.
Mas, para o sujeito de uma razão hegeliana de esquerda, a racionalidade é precariedade de um constructo do entendimento humano, e não aquilo que resulta do processo. Logo, o real não é racional enquanto a revolução proletária não a inaugura no mundo. 
Não há racionalidade se o programa revolucionário não é executado. Mas, Hegel havia entendido que o programa revolucionário havia sido posto em marcha com a revolução da modernidade: a laicização do estado, a vitória da ciência e da tecnologia, o direito constitucional, a revolução francesa, o iluminismo, e.t.c.
Hegel entendeu mais: ele entendeu que a racionalidade do mundo já se formava em etapas históricas pretéritas. Sem dúvida, na modernidade, Hegel via a consumação do processo. Aliás, não é outro o motivo que levou Hegel a identificar o real com o racional, pois foi a modernidade da vida que mostrou que não precisamos mais temer o mundo porque a racionalidade é que o comanda.
Como pós-hegelianos se pode falar em correção de rumo da racionalidade?  Podemos ainda imaginar uma racionalidade que se apresenta, dentro do esgotamento de uma racionalidade pratica, melhor calibrada?
A racionalização de Hegel continua revolucionária justamente porque permite correções de rumo, e bloqueia juízos morais burgueses que infectam o pensamento da superação!
Sergio Fonseca
Historiador


 

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